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OBSOLESCÊNCIA AVISADA

  • Foto do escritor: Rochelle Jelinek
    Rochelle Jelinek
  • 30 de set. de 2020
  • 7 min de leitura

Atualizado: 13 de set. de 2021

Sobre o futuro da prática jurídica

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A tecnologia impactou a sociedade e também o mundo jurídico. Nas próximas duas décadas veremos uma mudança maior do que vimos em dois séculos.

A tecnologia da informação gerou dois tipos de transformação: o uso de ferramentas de tecnologia na prática do Direito – por exemplo, automação de documentos jurídicos, sistemas de resolução online de disputas, gerenciamento de dados e processos eletrônicos – e, sob outro viés, o exercício do Direito como um reflexo da sociedade – que teve hábitos, comportamentos e relações sociais completamente modificados pela tecnologia. A maneira como empreendemos, compramos, aprendemos, nos comunicamos e nos relacionamos foram revolucionadas e demandam outros tipos de serviços. Mas se olharmos de perto, as mudanças na área jurídica até então incorporadas em geral apenas permitem que se faça digitalmente as mesmas tarefas que eram feitas fisicamente: pouca automação e quase nenhuma inovação. A “modernidade” do processo eletrônico nada mais é que uma processo físico digitalizado, sem mudanças inovadoras para a solução das questões.

A modernização da prática jurídica deve passar por dois aspectos: não só automatizar práticas jurídicas já estabelecidas, mas inovar em práticas disruptivas, revendo métodos, processos e conceitos de gestão, pois o mundo jurídico precisa estar apto a dialogar com as mudanças da sociedade. Isso significa a inversão da pirâmide, deslocando para a base os serviços administrativos, os padronizados, os repetitivos e os automatizados – com implantação de padrões e templates -, e no topo os customizados, concentrando-se em pareceres, opiniões, análises aprofundadas, contatos humanizados, soluções criativas e consultorias estratégicas para casos complexos.

Cabe aos profissionais se adaptar e desenvolver habilidades essenciais para estarem preparados para esse futuro exponencial repleto de desafios, sob pena de se tornarem equivalentes a filmes da Kodak. A regra de ouro é a necessidade de modernização das práticas e atuação multidisciplinar, um caminho inexorável.

Poucos são os pesquisadores que se dedicaram a estudar o futuro dos profissionais do Direito como Richard Susskind. Nas últimas décadas, o professor britânico produziu importantes trabalhos sobre as transformações no mercado jurídico e as novas perspectivas profissionais. Entre suas principais publicações, recebem especial destaque os livros The Future of Law (1996)[1], The End of Lawyers? (2008)[2] e Tomorrow's Lawyers (2013)[3]. Em uma profunda análise sobre a ressignificação da prática jurídica, Susskind não poupa críticas ao comportamento dogmático e arcaico dos profissionais jurídicos, das instituições e das entidades representativas – pilhas de folhas, trabalhos repetitivos, audiências desnecessárias e relatórios ineficientes –, e à visceral rejeição destes a tecnologias e a métodos sobre os quais não possuem conhecimento ou experiência.

Susskind sustenta que haverá uma diminuição da demanda a profissionais tradicionais no futuro próximo. Conforme o professor, as pessoas tenderão a procurar serviços mais baratos, com maior qualidade e que não necessariamente envolvam profissionais jurídicos, mas sim métodos inteligentes de resolução de conflitos, sejam eles automatizados ou personalizados. Os profissionais devem compreender as transformações que enfrentarão nos próximos anos e adquirir novas habilidades para lidar com circunstâncias que se propagam na esfera social, transformando-se em profissionais estratégicos, sob pena de uma obsolescência avisada.

O futuro anunciado por ele envolve novos formatos de serviços jurídicos, bem como novas funções para aqueles operadores do Direito flexíveis o suficiente para se adaptar às mudanças da sociedade. O professor britânico está convencido de que o mercado jurídico abrirá espaço para os chamados "profissionais aprimorados" (enhanced practitioners), que deverão conhecer técnicas e métodos de modernização, padronização e eficiência de processos. A questão é que seus prognósticos foram feitos há cerca de 26 anos. E muito do que ele previu de forma antecipada já está acontecendo. Ou seja, o futuro é o presente. É agora.

Dentre os arranjos alternativos para as novas práticas, Susskind sugere a decomposição dos serviços, para que sejam executados de maneira mais eficiente. Ele elenca tarefas-padrão de um serviço jurídico – análise de fatos e documentos, pesquisa legal, gerenciamento de projeto, suporte para litígio, estratégias, táticas, negociação e advocacia, e aduz que somente os quatro últimos serão exigidos pelos clientes ou assistidos a serem prestados por profissionais do Direito, podendo as demais serem terceirizadas, delegadas a profissionais de outras áreas especializadas ou mesmo realizados por sistemas de inteligência artificial.

Entre outros componentes da previsão de disruptura e modernização, Susskind elenca 10 novas funções necessárias na área jurídica. Em síntese, são elas:

-Híbridos jurídicos: Os juristas híbridos são profissionais com habilidades diferenciadas e conhecimentos multidisciplinares de psicologia, neurociência, comunicação social, economia, matemática, administração e outras áreas, que acrescentarão valor considerável ao serviço. São profissionais jurídicos com conhecimentos capazes de desempenhar funções jurídicas e outras correlatas aos casos em que atuam, como de corretor, psicólogo ou administrador de negócios, para auxiliar o cliente ou assistido na solução das suas questões. São profissionais como o mediador, o negociador jurídico, o consultor estratégico, o designer de sistema de disputas.

-Engenheiros de conhecimento jurídico: Os serviços jurídicos tendem a ser cada vez mais padronizados e computadorizados, e esse cenário exigirá profissionais capazes de organizar e modelar enormes quantidades de documentos jurídicos. Caberá aos engenheiros de conhecimento jurídico analisar e incorporar procedimentos jurídicos em sistemas computacionais e padronizá-los. Como resultado, podem surgir, por exemplo, vários serviços jurídicos online, como as soluções disponíveis no mercado por intermédio de lawtechs e legaltechs, que podem ser utilizadas pelos profissionais tanto para aumentar a produtividade e eficiência do trabalho quanto para oferecê-las como um diferencial do serviço jurídico prestado.

-Tecnólogos jurídicos: A prática do Direito é hoje dependente da tecnologia e da internet. Aliás, essa dependência tende a aumentar cada vez mais, tudo levando a crer que os serviços jurídicos serão impraticáveis sem as estruturas tecnológicas. É nesse contexto que atuam os tecnólogos jurídicos, profissionais habilitados para a prática do Direito, mas também para engenharia de sistemas, gestão da inovação tecnológica, gerenciamento de plataformas tecnológicas, visual law, storymapping, e até mesmo marketing digital.

-Analistas de processos: Esses novos profissionais serão habilitados para realizar análises confiáveis, perspicazes e rigorosas dos processos, para identificar as partes do serviço que podem ser decompostas e delegadas a terceiros (tais como análise de documentos, estatísticas, pesquisa legal, etc.).

-Gerentes de projetos jurídicos: Esses profissionais complementarão o trabalho do analistas. Concluída a análise processual, o gerente de projeto jurídico escolherá a quem delegar e terceirizar tarefas e supervisionará as etapas do serviço jurídico como um todo. Ou seja, caberá a ele verificar se as petições foram protocoladas dentro do prazo; se todos os documentos necessários foram juntados; se são necessários recursos para concluir o trabalho; etc. Sua atuação diz respeito à parte organizacional.

-Cientistas de dados jurídicos: Com o crescimento da inteligência artificial e análise preditiva no ramo do Direito, haverá espaço reservado para o cientista de dados jurídicos. Este profissional, que deverá ter conhecimentos sobre leis, matemática, estatística e linguagem de programação, ficará encarregado por captar e analisar dados, identificar correlações, tendências, padrões, e insights – tanto em recursos jurídicos quanto em materiais não jurídicos. Muitos serão responsáveis por jurimetria e outras ferramentas do gênero. Ao lançar, cruzar e analisar, por exemplo, dados de juízes, comarcas, pedidos e decisões destes juízes nas comarcas, dados de contratos de empresas, dados de órgãos públicos, e dados estatísticos, começa um processo de análise de ganho/perda conforme o pedido, possibilitando apresentar prognósticos e contingências mais próximos do real. Uma variação dessa função é o estrategista de dados jurídicos, com conhecimentos de design thinking, responsável por analisar dados para tomar melhores decisões não só em relação a processos judiciais, como também para prevenção de novos litígios e gestão de conflitos.

-Especialistas em pesquisa e desenvolvimento: Desenvolver novos recursos, técnicas e tecnologias para fornecer serviços jurídicos de diferentes maneiras será o papel do especialista em pesquisa e desenvolvimento. Em resumo, este profissional terá uma função muitas vezes mais exploratória do que prática e será importante para aprimorar os serviços jurídicos oferecidos pelos escritórios de advocacia ou pelas instituições públicas.

-Especialistas em resolução de disputas online: Nos sistemas de resolução de disputas online (ODR, do inglês Online Dispute Resolution Systems), os especialistas em ODR terão um papel importante no mercado jurídico, aconselhando seus clientes sobre as melhores plataformas de resolução de conflitos e formas de resolver os litígios com eficiência, decodificando dados para que os assistidos compreendam informações, dinâmicas e recursos de inteligência artificial, elaborando materiais de subsídio para as tomadas de decisões pelas partes ou pelos terceiros neutros.

-Consultores de gestão jurídica: Os consultores de gestão jurídica serão profissionais com conhecimentos de Direito, Administração e Tecnologia e habilidades para oferecer consultas estratégicas (envolvendo itens como planejamento de longo prazo e estrutura organizacional) e operacionais (envolvendo itens como recrutamento, seleção de escritórios jurídicos, controle financeiro, comunicações internas e gestão de documentos).

-Gestores de riscos jurídicos: Em um mundo cada vez mais conectado e com relações humanas complexas, haverá espaço para os gestores de riscos jurídicos, que realizarão atividades como revisão de riscos, avaliação de litígios, auditorias de compliance e análise de compromissos contratuais. Em resumo, o foco será antecipar as necessidades das partes, para conter problemas jurídicos antes que se agravem. Para essas funções, o profissional também precisará dominar habilidades multidisciplinares para análise e gestão de conflitos.

Veja-se que muitas dessas previsões feitas anos atrás por Susskind já estão no mercado em vários formatos e denominações: Law Techs, Marketplaces, Visual Law, Legal Design, Design Thinking, Visual Thinking, Smart Contracts, Legal Data Science, Jurimetria, Consultorias legais online, Disput System Design (DSD), Online Dispute Resolution Systems (ODR), Compliance, Mediação, Negociação e outras formas de solução alternativa de conflitos. Dentre essas possibilidades, abundam modelos híbridos.

Destarte, a modernização para atender as inovações e demandas da sociedade exige habilidades multidisciplinares associadas ao Direito, em pelo menos esses três aspectos: tecnologia da informação, administração/gestão e comportamento/comunicação. Embora não sejam funções que estudantes pensem quando se formam ou que profissionais antigos cedam – porque ensinados a pensar somente em artigos de lei, processos, litígios, petições, audiências - no futuro próximo elas serão, nas palavras do professor Susskind, socialmente significativas e modernamente demandadas.




Referências:

[1] SUSSKIND, Richard. The Future of Law: Facing the Challenges of Information Technology. Claredion Press, 1998.

[2] _____. The End of Lawyers? Rethinking the Nature of Legal Services. Oxford: Oxford University Press, 2008.

[3] ______. Tomorrow’s Lawyers: Na Introduction to Your Future. Oxford: Oxford University Press, 2013.



Pesquisa qualitativa sobre o futuro das profissões jurídicas:

Pesquisa quantitativa sobre o futuro das profissões jurídicas:



Sobre tendências de futuro e inovação, veja também:



 
 
 

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